Páginas

domingo, 22 de dezembro de 2013

Outras prioridades

É de conhecimento de todos que quando crianças somos muito mais livres, criativos e dispostos a fazer o que queremos, e também se tem um olhar bem mais simplista sobre a vida. Talvez essa seja a definição de felicidade. O fato é que crescemos, ganhamos obrigações e começamos a ter o que pode ser chamado de “outras prioridades”.

São as outras prioridades que nos deixam práticos, menos românticos, com pouca sensibilidade e sem tempo para nos dedicarmos a uma atividade solitária, por exemplo. A uma atividade que não nos trará dinheiro ou nenhum benefício que poderemos aproveitar de forma pragmática. Por isso é muito comum não entender o prazer de produzir algo a partir da criatividade descompromissada, como quando éramos crianças mesmo. Afinal, aparentemente, isso não serve pra nada e gasta um tempo que não volta mais.

É considerando o fim de dezembro e pensando nessas perdas e mudanças de hábitos que sofremos enquanto crescemos e viramos sabichões da vida, que me lembro do falecido cartão de natal. Me refiro principalmente àquele um criado na pré-escola, aquele um que demos aos nossos pais e eles colocaram na árvore de natal da sala, mesmo com aquelas lantejoulas bregas e com tantos erros de ortografia. Era original, não havia nenhum no mundo igual e um certo tempo de nosso dia foi dedicado somente para ele.

A verdade é que mesmo cedo já passamos a não dar importância para esse tipo de atividade e seguimos para o caminho do prático. Por isso, ainda crianças começamos a comprar os cartões prontos e entregá-los para os pais, os tios, avós, amiguinhos de bairro e etc. Pode ser o sentimento banalizado, pode ser o sentimento de amizade aflorado com o natal, pode ser. Mas a certeza é a repetição de mensagens: “feliz natal e próspero ano novo!”, “que o menino Jesus te conceda muita luz no próximo ano” e a finalização: “são os meus sinceros votos”. Ainda repetimos essas mesmas mensagens, seja pelo o email que, além de você, foi encaminhado também para mais de trezentas pessoas, na mensagem automática do Orkut ou a tag do Facebook. Desejar um sentimento e demonstrar isso é muito prático hoje em dia, mas também é impessoal e automatizado.

É verdade que se pode considerar o natal uma data apenas e que todo esse barulho é mais feito pelos shoppings do que sentimentos puros. Mas também é verdade que as “outras prioridades”, que nos obrigam a praticamente dirigir as horas do dia, tiram o significado e o prazer de muitos momentos, como a atividade criativa que geralmente gostávamos tanto durante a infância, quando a vida era simples.


A substituição dessas pequenas dedicações nos priva de conhecermos a fundo, num significado mais subjetivo, a nós mesmos, tornando nossas vidas de adultos e suas sensações muito superficiais e em busca de algo que nunca saberemos o que exatamente é, e, que na correria do dia e a necessidade de aproveitar o cada segundo, nos afasta cada vez mais do que é nosso, do que é simples, do nosso tempo de concentração e dedicação a uma atividade menos objetiva e mais reflexiva. 

domingo, 22 de setembro de 2013

Nas doutrinas do século XIX


A obra O Primo Basílio (1878) do Eça de Queirós é um daqueles grandes romances puramente realista e naturalista: o objetivo é desmascarar a burguesia do século XIX Mostrar como a falta de virtude não leva a lugar nenhum, ao mesmo tempo em que toda a sociedade vive nesse vício dos falsos valores.

A obra do Eça é até hoje polêmica porque apesar de ser uma leitura divertida, cheia de ironias e figuras que se transformaram clássicas – das palavras pomposas do Conselheiro Acácio ou o cheiro de feno da Dona Felicidade – os valores que ela prega são fáceis de se tornarem ultrapassados ou até mesmo superficiais. Eu fico um pouco com o pé atrás com a figura do Eça de Queirós por causa desse livro. Eu comecei a lê-lo de trás pra frente: primeiro os livros mais tranquilos, de temas mais leves como A cidade e a Serra. E só agora que li esse romance do auge do realismo. O que me mostrou um homem de seu tempo: machista e católico.

Quando terminei de ler O Primo Basílio me perguntei se realmente todo o castigo de Luísa só aconteceu porque ela tinha uma empregada invejosa e porque suas cartas foram descobertas. Tirando isso, ela e Basílio talvez estivessem felizes até hoje no Paraíso.

Lendo um pouco por aí descobri que esse foi um comentário normal na época, o que fez a sociedade se dividir entre concordar ou discordar do livro. A verdade é que esse modelo educador e doutrinário de fazer literatura se repetiu muito naqueles anos do século XIX.

Há poucas semanas li Bel-Ami (1885), o romance de Guy de Maupassant, e desde suas primeiras linhas eu vi semelhanças com o livro do Eça. Os adultérios, a duvidosa ascensão social e os tipos sedutores da sociedade. Até que encontrei dentro de Bel-Ami  linhas que contam e definem a história d’ O Primo Basílio:

<<(...) Todas as mulheres são pegas; o que é preciso é servirmo-nos delas e não lhes dar nada de nós próprios. >>

Quem disse isso foi Jorge Duroy em Paris, mas poderia ter sido Basílio em Lisboa, ou qualquer autor realista do século XIX.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Fundação Saramago

Tem gente que nasceu para ter uma vida bonita. Mas José Saramago exagera nessa beleza. Discreta e sensível, a vida do autor é cheia de detalhes que merecem atenção. Desde a sua tardia carreira dedicada unicamente para os romances, de seu casamento também tardio (ou no tempo certo) com a Pilar Del Río, ou, simplesmente, pelo o fato de ser de uma família de lavradores analfabetos.

Hoje existe a Fundação Saramago. A fundação obedece as manias do autor: tem uma beleza construída pelos detalhes. O prédio em si já é uma pérola na história. Situada na Casa dos Bicos, com uma arquitetura atípica do século XVI. A casa foi construída por uma família da nobreza, mas com o passar dos anos o casarão teve inúmeras funções, até mesmo armazém de bacalhau (veja bem, a morada da casa é a rua dos bacalhoeiros) durante o século XX. Agora ela está sob o poderio da Câmara Municipal de Lisboa e será da Fundação Saramago por 20 anos.

A Fundação nos aproxima mais ainda do mundo de Saramago e, por conseguinte, de Pilar. Museus e fundações de escritores são sempre emocionantes, têm aqueles objetos pessoais: os óculos, os livros, as fotos. No caso de Saramago, sua agenda aberta na anotação de seu primeiro encontro com a jornalista que depois seria sua esposa e presidente da sua fundação. Fora os relatos de viagens e etc.

Mas a particularidade mais linda dessa história é sobre a oliveira que está em frente ao prédio. Ela veio de Azinhaga do Ribatejo, aldeia em que José Saramago nasceu, e junto com suas raízes estão enterradas as cinzas do autor. A terra que envolve raízes e cinzas são de Lanzarote, ilha do arquipélago das Ilhas Canárias, local em que Saramago viveu durante muito tempo e até a sua morte, e onde está também localizada a biblioteca que ele criou e inaugurou ao lado da esposa.

Bem, cinzas são só cinzas e não dizem nada, é verdade. Mas elas estão justificadas pela descrição da lápide, escrita no chão, logo ao lado da oliveira. Lá está: “Não subiu para as estrelas, se à terra pertencia”. A frase foi retirada da obra Memorial do Convento, é a última frase do livro que se apresenta exatamente assim: “(...), mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Bilimunda”.




Pois, não subiu para as estrelas se a vida está presa nos livros, nas palavras. Que lemos, relemos e as fazemos viver toda vez que indicamos aos grandes amigos. Uma vida que por causa da literatura não é esquecida, tem que estar mesmo presa às terras de uma oliveira de onde tudo começou.

domingo, 7 de abril de 2013

Cabo Verde e Chiquinho


Este texto não é uma resenha nem uma crítica muito amadora. Não mesmo. É apenas um comentário de como e um pouco do porquê eu gostei tanto do livro Chiquinho de Baltasar Lopes.

O livro retrata a vida da personagem Chiquinho, nascido em Cabo Verde na ilha de São Nicolau.  E nos conta, por intermédio dele mesmo, o Chiquinho, a sua trajetória: da infância, dos seus anos de estudos em São Vicente, o seu retorno a casa e um pouco de seu futuro. Essas são três fases da vida da personagem que consta no livro e também como a obra é dividida. Porém, Chiquinho não é egoísta e não nos conta apenas sobre ele, o livro nos serve para entendermos um pouco da identidade do país e nos informar sobre os problemas de miséria daquele povo.

Na verdade, eu vi bastante traços da literatura brasileira. A literatura neo realista, que se aproxima da denúncia social e do regionalismo. E a partir disso eu a coloco ao lado daquele grupo de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego... Enfim, essa vertente que tanto me atrai e que apesar de nos contar histórias na sua maioria tristes, conseguem colocar e nos fazer sentir a leveza de suas personagens.

E em Chiquinho acho que sobra leveza. A começar pelo narrador-personagem. A infância povoada de figuras que durante toda a história, mesmo quando ele está longe, cita, e lembra, e associa o seu atual momento com essa velha época de histórias contadas por Nhô Chic’Ana, Totone Menga-Menga ou os conselhos de Titio Joca.
O discurso, a linguagem em si, também é responsável pela leveza e nos faz sentir na pele a pobreza que só a falta de água pode trazer.

Os inúmeros significados para o mar, o mar que pode esconder ou trazer um futuro diferente para todos os amigos de Chiquinho, que diferente dele, não têm uma vida um pouco mais confortável. Como a personagem-narrador fala de seu avô que não conheceu, mas que porém é muito respeitado dentro da casa. A questão do seu pai, que imigra para os Estados Unidos e que apesar de ser  em parte seus dólares o responsável por aliviar a família da miséria, torna-se um mistério e uma figura longínqua que só se tem notícias pelas cartas, e que a uma certa altura Chiquinho o nomeia de “Antonio Manuel, em 103 South Second Street”. Estes são alguns elementos que caracterizam a vida da personagem, o espaço e a identidade do povo.

Tive que ler a obra para uma disciplina, por acaso literaturas africanas, que está me fazendo conhecer  um pouco deste continente para além das leituras de Mia Couto e Agualusa. Durante a aula o professor comparou o livro de Baltasar Lopes com Dom Casmurro em importância dentro de Cabo Verde. E agora até posso dizer que apesar do neo realismo, eu também vejo nessa obra a entrega total da personagem em narrar o que realmente lhe aconteceu, principalmente quando digo sobre os sentimentos e impressões. Exemplo disso é quando ele volta para São Nicolau, após estudar no liceu de São Vicente, e se sente um estranho face aquela antiga vida. Não tem mais vontade de viver ali, sente saudades de seu amigo Andrezinho, o Erudito, a saudade do namorinho com Nuninha e etc. É aquela sensação terrível de mudança, que às vezes negamos. E de fato, o local não era mais o mesmo: seus colegas de escola estavam sem futuro, alcoólatras, trabalhadores rurais e sofrendo as mais drásticas consequências da miséria. Tudo isso e mais o distanciamento  entre eles  incomoda Chiquinho arrebatadoramente.

Na verdade, essa obra é tida como um romance de iniciação, pois apesar de eu tê-la traçada em linhas muito gerais e pessoais, é o romance mais importante de Cabo Verde, sendo a primeira grande obra do país, publicada em 1947.  E realmente, é de se tomar consciência sobre um lugar tão distante e que enfrenta problemas tão árduos ao mesmo tempo que revela um característico carisma.

E apesar de ser de um lugar que tão pouco ouvimos falar, é uma obra originalmente em português. Acho que deveria ter lido antes este livro, e também penso que ele não poderia ter sido escrito em outra língua.

domingo, 17 de março de 2013

Asa branca por Caetano


Final do ano passado, eu fui ao cinema ver Tropicália, dirigido por Marcelo Machado. Acho que o filme foi importante em uma coisa; resgatar algumas imagens (perdidas), sobretudo a versão de Asa Branca que Caetano tocou em uma tv francesa. Tá aqui a pérola:


Caetano, no exílio, aproveita a velha canção de Gonzaga para falar do momento em que vivia longe de casa. A versão é incrível. Sozinho em cena, entre a melódia e onomatopeias, a tristeza passa além dos olhos caídos e a simplicidade dos acordes nessas imagens nostálgicas em preto e branco.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Pra variar

Conheci Variações em retribuição por ter apresentado à um amigo português o Secos e Molhados (e junto Ney). Fiquei encantado, a performance e as letras não me eram tão estranhas, logo lembrei dos tropicalistas e de uma estética dos anos 70 (e de um Raul com sotaque lusitano) . Mas, para mim, António Variações ainda era uma figura anacrônica em Portugal. De vanguarda, vanguardista, a música do cabeleireiro – assumidamente gay, e, a primeira figura pública a morrer de AIDS em Portugal, chocava as noites em um país cheio de tradições.



terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Menos dinheiro, mais qualidade



É bem verdade que a internet é democrática, é bem verdade que por intermédio dela todos andam se expressando muito mais. E quando eu digo em se expressar, não estou me referindo a essa terra sem dono que a rede virou, local em que as pessoas andam se desrespeitando cada vez mais, e mais do que isso, esquecendo-se o que é bom senso. Quando eu falo em expressões estou me referindo às artísticas. Digo isso tendo em vista os inúmeros blogs (cof, cof) que variam de crônicas até as poesias, das bandas de garagem, dos artistas plásticos e etc.


E no entanto, não é por causa dessa aparente democratização que estamos tendo acesso a mais alta produção artística de todos os tempos, ao contrário. O grande número de informações faz com que precisemos urgentemente de ferramentas que filtre o que é bom, fantástico, do que é ruim, medíocre.


E é dessa necessidade que esses dois links falam sobre. Quer dizer, eles abordam mais assuntos, mas o que me fez relacioná-los foi este tema. O primeiro é a entrevista de André Schiffrin, editor e escritor criador da New Press, que vem a ser uma editora corajosa: edita-se e publica-se literatura sem visar lucro. O segundo é uma entrevista do crítico musical Tárik de Souza, cedida à Rádio Batuta (que descobri a pouco tempo e recomendo). O objetivo da entrevista é falar sobre a música brasileira de antes da Bossa Nova. O que vem a ser de fato um passeio no tempo e ótimas histórias, tanto do entrevistado como do entrevistador. Porém, acontece que o crítico se lamenta durante toda a entrevista sobre a falta das rádios, das rádios que lançaram o Trio de Ouro, por exemplo.


Os dois nomes concordam em praticamente os mesmos pontos: Schiffrin diz que se Kafka escrevesse hoje, nenhuma editora iria se interessar por ele, porque quando foi publicado pela primeira vez vendeu pouquíssimo. Hoje em dia, nenhum editor iria se interessar justamente por isso: iria vender pouco e não iria trazer lucro. E logo acusa a busca por dinheiro das editoras convencionais e da Amazon como motivos que estão matando a literatura contemporânea. Não dando chance a obras de qualidade que se afirmam apenas com o decorrer do tempo, e preferindo sempre a publicação de livros nos formatos best-sellers, que com certeza trazem dinheiro imediato. E é por causa dessa recusa das editoras que os escritores estão migrando para a internet, mas como o próprio editor diz: “quando se coloca uma coisa na internet, ela desaparece”, devido ao grande número de informações. Apesar de Schiffrin ser utópico sobre a criação de uma legislação que trate do mundo virtual e quanto acreditar que todos se interessam pela Literatura, ele convence sobre a importância de um editor e mais do que isso, de uma editora.

Na entrevista de Tárik de Souza, a editora é a rádio, uma rádio que buscava talentos e não o dinheiro. A rádio que revelava grandes nomes, e não optavam pelos mesmos artistas, ou pelo mesmo formato deles. Hoje em dia, segundo ele, nas rádios vive-se a ditadura econômica. Só se ouve aquele que tem dinheiro – e dinheiro não é a mesma coisa de talento e criatividade, como sabemos.


Recomendo as duas entrevistas. Por estes pontos citados, mas também porque eles falam sobre muito mais. Schiffrin é uma biblioteca (eu quase que escrevo Wikipedia, que gafe) tamanha a quantidade de dados que guarda em sua cabeça e com ótimos argumentos de conservar a cultura através de investimentos em bibliotecas e etc.  Enquanto que Tárik conta de uma forma descontraída sobre a entrevista que fez com João Gilberto e o samba que compôs com Pixinguinha. Sem dizer as canções que ele selecionou, que mereciam um texto a parte.